Júlio César de Mello e Souza (1895 – 1974)

ISBN: 978-65-00-51398-1

Malba Tahan (1885 – 1921)

       Júlio César de Mello e Souza nasceu em 6 de maio de 1895, no Rio de Janeiro, mas passou a infância em Queluz, interior de São Paulo. Marido de Nair de Mello e Souza, ex-aluna com quem ficou de 1925 até o fim de sua vida, e pai de Rubens Sérgio de Mello e Souza, Maria Sônia de Mello e Souza, Ivan Gil de Mello e Souza, Mello e Souza foi professor, escritor, conferencista e articulista de periódicos, além de criador de diversos heterônimos, com destaque para o Malba Tahan. Classifico como heterônimo, pois, de acordo com Alberti (2004), heterônimos, diferentemente de pseudônimos, são personagens que pensam e têm estilo diferentes do seu autor, traço que se nota na relação entre Mello e Souza e Malba Tahan.

           Ali Yazzed Izz-Eddin Ibn Salin Hank Malba Tahan, por sua vez, nasceu em 6 de maio de 1885 na aldeia de Mazalit, nas proximidades da antiga cidade de Meca. Era escritor e de descendência muçulmana. Segundo breve biografia presente na edição número 205, do jornal A União – órgão oficial do Estado, de João Pessoa (PB), lançado em 13 de setembro de 1933, estudou no Cairo e, mais tarde, quando em Constantinopla, cursou Ciências Sociais. Além disso,

datam dessa época os seus primeiros trabalhos literários que foram publicados em turco, em diversos jornais e revistas. A convite de seu amigo o Emir Abd el Azziz ben Ibrahim, exerceu Malba Tahan, durante vários anos, o cargo de quaimaquam (prefeito) na cidade Árabe de El-Medina, tendo desempenhado as suas funções administrativas com rara inteligência e habilidade. (…) Pela morte de seu pai, em 1912, recebeu Malba Tahan uma grande herança; abandonou, então o cargo que exercia em El Medina e iniciou uma longa viagem através de várias partes do mundo. Atravessou a China, o Japão, a Rússia, grande parte da Índia e Europa, observando os costumes e estudando as tradições dos diversos povos. Entre as suas obras mais notáveis, citam-se as seguintes: “Roba-el-Khali”, “Al-samir”, “Sama-Ullah”, “Maktub”, “Lendas do Deserto”, “Mártires da Armênia” e muitas outras. Foi ferido em combate (julho de 1921), nas proximidades de El Riad, quando lutava pela liberdade de uma pequenina tribo da Arábia Central (…) [e, ali, morreu] (1933, p. 3).
 

           O resumo biográfico de Malba Tahan foi publicado no jornal em razão do lançamento e da propaganda do livro “Lendas do Oásis”, pela editora Civilização Brasileira S/A (1929 – atual, sendo parte do Grupo Editorial Record). Os elementos tão específicos que compõem a biografia do personagem, também denominado alter-ego, por Jarouche (2021), corrobora com a defesa de que Malba Tahan foi um sujeito completamente diferente de seu criador, assumindo forma, origem, nacionalidade, formação escolar, atividade e trajetória profissional totalmente diferentes de Mello e Souza. Trata-se de um sujeito que possuía vida própria.

           Malba Tahan, porém, não foi o único personagem de Mello e Souza. Segundo Siqueira Filho (2008), também houve Salomão IV, R. S. Slady (Slade) e Breno Alencar Bianco. Observe a imagem que estampa a página 31 da tese de Siqueira Filho:

Figura 1: O imperador, o professor e o contador de histórias [s.d]. Fonte: Imagem extraída da tese de Siqueira Filho (2008, p. 31).

           Por meio dela, o autor ilustra as múltiplas vidas surgidas a partir de Mello e Souza, ainda que não apresente todas. Salomão IV foi o primeiro personagem criado por Mello e Souza, provavelmente na condição de pseudônimo. Mello e Souza sempre demonstrara prazer com o mundo das Letras, de modo que, aos onze anos de idade, em 1907, criou o jornal “ERRE”, findado um ano depois. De acordo com Siqueira Filho (2008), que realizou pesquisas no Arquivo Pessoal de Malba Tahan, parte do Instituto Malba Tahan, em Queluz (SP),

até o número treze, o menino Julinho assinava como “redator/editor”. A partir do número quatorze, o jornal passou a ter como redator Salomão IV, o qual promoveu mudanças significativas na linha editorial: além da periodicidade, o jornal passou, também, a ser crítico [e] illustrado (ARQUIVO PESSOAL – IMT. ERRE). Seria o início da opção de Mello e Souza pelo uso de pseudônimos (SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 151).

           Siqueira Filho (2008) considera 846 e Capote como pseudônimos de Mello e Souza. Contudo, considero-os seus apelidos: 846 era sua “identificação”, no âmbito do Colégio Militar, pois, de acordo com ele, “os alunos do Colégio Militar não eram conhecidos por seus nomes e sim por números” (p. 150); e Capote era seu apelido no Colégio Pedro II. Breno Alencar Bianco e R. S. Slady (Slade), no entanto, são, de fato, pseudônimos. O primeiro foi o responsável por traduzir e anotar algumas produções de Malba Tahan; já o segundo, escritor de sucesso de Nova Iorque que Mello e Souza, supostamente, havia traduzido.

           Siqueira Filho (2008) explica que “o pseudônimo [de Malba Tahan] fora composto pelas palavras Malba, [que parecia ser] um pequeno oásis localizado no Iêmen (Arábia) e Tahan, o moleiro que prepara o trigo, [conforme sobrenome] de uma aluna da Escola Normal, Maria Zechsuk Tahan”. Além disso, em entrevista dada para a composição do terceiro volume de Falam os Escritores, em 1941, Mello e Souza apresenta o modo como criou Malba Tahan:

O caminho, então, seria tratar de escrever com um pseudônimo estrangeiro. Pensei mais sobre o caso. Qual o pseudônimo a adotar? Deveria ser um que tivesse todo cunho de realidade. Americano? Mas não.
Queria um pseudônimo que se conformasse bem com o caráter dos trabalhos que pretendia escrever… Seria um árabe.
– Por quê?
– O árabe é homem que faz poesia a propósito de tudo. Suas atitudes sempre são romanescas. Não compreende a vida sem a poesia. Mas o pseudônimo não deveria ser nem masculino e nem feminino. Teria de ser sonoro. Teria de dar a necessária impressão de perfeita autenticidade. Na Escola Normal, havia uma aluna com um sobrenome interessante: Maria Tahan. Simpatizei-me com esse Tahan. Perguntei-lhe que queria dizer. “Moleiro” – respondeu-me ela. Fui, dias depois, descobrir num mapa da Arábia, o nome de uma cidade – Malba, aldeia perdida na Arábia Pétrea …
– E nasceu Malba Tahan …
– Que, como vê, pode ser traduzido por “moleiro de Malba”. Comecei, então, a estudar a civilização árabe. Li Gustavo Le Bon, comprei o Alcorão, numa edição comentada, percorri as obras de Massoudi. Tomei um professor de árabe: o dr. Jean Achar. Tempos depois, quando já havia me enfronhado nas coisas do Oriente, procurei Irineu Marinho, a esse tempo um dos diretores de A Noite. Apresentei-lhe uns trabalhos de Malba Tahan. Disse-lhe que se tratava de um escritor árabe; acentuei que eu apenas havia traduzido alguns de seus trabalhos (PEIXOTO, 1971 apud HELD, 2010, p. 5).

           Nota-se, assim, um esforço de Mello e Souza em tornar a existência de Malba Tahan bastante crível, o que, durante alguns anos, fez com que o grande público acreditasse que, de fato, houvesse dois autores distintos (SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 37 e 42). O prefácio de Contos de Malba Tahan, publicado em 1925 pela Editora BrasLux, é um bom exemplo para mostrar a dedicação de Mello e Souza em fazer os leitores acreditarem na existência do autor. Nele, Mello e Souza traz aspectos reais e imaginários sobre o modo de descobrimento de Malba Tahan: um sujeito, chamado Ahmed Kamil, foi responsável por registrar em carta o descobrimento que fizera em relação ao escritor matemático, caracterizado como “um precursor, um mestre, um chefe de escola”. Mello e Souza foi arguto e “enganou” seu público o quanto quis, mas, ao final desse mesmo prefácio, explicou que “Malba Tahan, escriptor obscuro e inteiramente desconhecido na Europa e na America, teve sua existencia prevista e determinada por uma simples analyse… literária” (TAHAN, 1925, prefácio apud SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 44, grifos meus), o que, de acordo com Siqueira Filho, pode ser interpretado como uma forma de assumir que se tratava de uma invenção literária.

           Nesse sentido, Jarouche (2021) argumenta que criar uma história que apresente elementos da cultura árabe ou muçulmana não tem origem em Mello e Souza. Alguns autores ocidentais já haviam lançado mão desse cunho narrativo, com especial destaque para Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Lima Barreto. Esse último com Contos argelinos, de 1920, que, seguindo o contexto de produção herdado do período imperial, era composto de aventuras, sátiras e humor (JAROUCHE, 2021, p. 17), ainda que a história se passe no “País de Al-Patak, o qual era governado pelo usurpador Abu-Al-Dhudut, referência a Hermes da Fonseca” (OLIVEIRA, 2005, resumo). Contudo, no Brasil, a cultura árabe e muçulmana ainda não era devidamente valorizada no período (primeira metade do século XX), sendo alvo de narrativas preconceituosas, excludentes e de zombaria, por fugir do “cânone cultural” europeu e americano. Jarouche defende que a narrativa de Mário de Andrade, no conto “Os sírios” (1926), vista do ponto de vista atual, é repleta de estereótipos e elementos de cunho racista (2021, p. 18).

           Os exemplos buscam demonstrar como Mello e Souza se diferenciava de outros sujeitos que haviam levado a cultura árabe e muçulmana para a narrativa literária. Ninguém havia feito o que e do modo como o professor o fez: ele foi alguém que se debruçou na cultura sobre a qual trataria, que mergulhou nos estudos da língua, da geografia e da história da região e que faria disso um excelente recurso para discutir e ensinar matemática. Os elementos, contudo, mais importantes foram o cuidado, o envolvimento e o apreço que Mello e Souza teve ao traçar o percurso de criação de Malba Tahan, o que pode ser reforçado ao ler uma nota emitida pelo Jornal do Comércio, de Manaus, em 29 de setembro de 1933, ao descobrirem que se tratava de um “pseudônimo”: “[O] Brasileiro, tem (…) um carinho immenso por tudo quanto nos vem daquellas terras distantes com o sabor de um pittoresco suprehendente” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1933 apud HELD, 2010, p. 9).

           Outra preocupação de Mello e Souza parecia ser o cuidado que tinha com o registro e a conservação de seus documentos, como uma forma de já elaborar seu próprio arquivo pessoal. Ele esclarece que “o archivo tem por fim conservar muitos papeis, cartas, retratos, cartões etc que não poderiam ficar no Diario. (…) [Portanto,] Todo e qualquer documento de minha história será conservado de agora em diante no Archivo” (ARQUIVO PESSOAL – IMT. 1918 -17 de novembro; Archivo, 1917 – 19, v., 1 Folha de Rosto apud SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 175, grifos meus). O professor parecia já prever o sucesso que ele e seu heterônimo fariam.

           Seu nome literário é tão difícil de dissociar de seu nome biológico que, de acordo com Jarouche (2021, p. 16), “Júlio César recebeu autorização especial da Presidência da República, na pessoa de Getúlio Vargas, para carregar, em seu registro de identidade, o nome de Malba Tahan além do seu próprio”, conforme a imagem a seguir:

Figura 2: Identidade de Mello e Souza com a inclusão de seu pseudônimo. Fonte: Imagem extraída do site Malba Tahan em “Documentos pessoais”.

           Contudo, cabe salientar suas diferenças. Ainda que Malba Tahan seja um nome de peso no campo da matemática, Mello e Souza também o é, haja vista sua atuação como professor dessa cadeira em diversos espaços, como na antiga Escola Normal; na Universidade do Brasil (Escola Nacional de Belas Artes), sendo, depois, transferido para a Faculdade Nacional de Arquitetura; no Instituto de Educação, no Rio de Janeiro, com as disciplinas de matemática, literatura infantil, folclore, além de ter instituído a disciplina “Arte de Contar Histórias”. Ademais, deu aula de Didática Geral e Didática da Matemática, por oito anos, nos cursos da Companhia de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES). Foi, ainda, “professor de Colégios particulares, religiosos e de escolas técnicas ao longo de sua vida e em outros lugares”. Atuou junto ao “Serviço Nacional de Assistência aos Menores (S.A.M.), entidade que atendia a menores carentes, na Escola João Luiz Alves, trabalhando com menores delinquentes”. Foi professor, também, do Colégio Pedro II, instituição que tem expressiva relevância em sua trajetória (CAVALHEIRO, 1991; MORAIS, 2017).

           Júlio César de Mello e Souza foi o quinto de nove filhos de João de Deus de Mello e Souza e Carolina Carlos de Mello e Souza. Nasceu no Rio de Janeiro, mas sua família, que antes vivia em Queluz, resolveu voltar para esse município, onde passaram por grandes dificuldades. Em 1905, aos 10 anos de idade, Júlio César retornou para o Rio de Janeiro, a mando de seu pai, para se preparar para ingressar no Colégio Militar. Três anos após seu ingresso, saiu do colégio, e, em 1909, conseguiu bolsa para estudar no Colégio Pedro II. Sua vida como estudante do colégio foi narrada em seu livro autobiográfico intitulado “Acordaram-me de madrugada: Memórias do escritor como aluno interno do Colégio Pedro II”, assinado por Malba Tahan e publicado em 1973 pelo Colégio Pedro II. Foi nesse espaço, inclusive, que Mello e Souza começou a mostrar suas habilidades de escrita e seu desejo de ser professor.

           Conta-se que Mello e Souza escrevia e vendia redações para colegas que apresentassem dificuldades na disciplina de Português, oferecida pelo professor José Júlio da Silva Ramos, à época, e foi, ali, que começou a ganhar alguma fonte de renda e a mostrar e desenvolver seu talento. Foi também durante seu período como estudante do Pedro II que teve a experiência de primeiro emprego, na Biblioteca Nacional, como servente e auxiliar interino, e, mais tarde, como carregador de livros no terceiro armazém da Biblioteca (SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 158).

            Após seu período no Colégio Pedro II, Mello e Souza estudou na Escola Normal do antigo Distrito Federal (atual Instituto de Educação) e fez o curso para se tornar professor primário. Ali, confirmou sua vocação. Contudo, cursou Engenharia Civil, no âmbito da Escola Politécnica da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), mesmo nunca tendo atuado. Na mesma época em que cursou Engenharia Civil, atuou como professor de turmas suplementares do Externato do Colégio Pedro II, com diferentes disciplinas: História, Geografia e Física, até chegar na Matemática.

            Siqueira Filho (2008) explica que, naquela época, para assumir a Cátedra de Matemática do Colégio Pedro II, era necessário escrever e defender uma tese acerca do tema, demonstrando conhecimento avançado no campo. Menos de um ano depois de sua graduação, em 1933, Mello e Souza defendeu a tese “Estudo elementar das curvas planas – Funções Modulantes”, com vistas à aprovação no concurso. Contudo, ficou em segundo lugar. O aprovado foi Haroldo Lisboa da Cunha, também engenheiro – civil, geógrafo e eletricista (SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 160-162).

            De acordo com Siqueira Filho (2008), todos os concorrentes eram engenheiros, o que, para ele, justificava a insistência de Mello e Souza em terminar a graduação, mesmo tendo levado 20 anos, entre a sua entrada e a colação de grau, para terminá-la, e não tendo atuado, efetivamente, na área. É possível que seu desejo fosse o de se instrumentalizar para atuar como professor de Matemática, ainda que, por um longo tempo, tenha ensinado outras disciplinas no curso primário.

            A entrada de Mello e Souza para o ensino de Matemática pode ser considerada um ganho para a disciplina, diante de toda a revolução que faria futuramente, mas Siqueira Filho (2008, p. 163) defende que, inicialmente, a concepção que o professor tinha desse campo de conhecimento era de uma disciplina “imutável, isenta de valores e organizada por números”, que ia ao encontro do que se compreende como “algebrismo” (SANTOS, 2017), mas que divergia da pedagogia nova, incentivadora de sujeitos críticos e ativos no processo de aprendizagem, que ele viria a ensinar. Tanto mudou que foi capaz de aliá-la com a literatura. É interessante pensar no modo como Mello e Souza, ou melhor, Malba Tahan, em sua sagacidade, aliou uma disciplina considerada dura e difícil com outra que, em um primeiro olhar, não teria nada a ver com ela. Ao passo que Malba Tahan apresentaria essa faceta através de seus variados livros de cunho essencialmente literário que estampavam uma matemática divertida, Mello e Souza a levaria por meio de palestras, eventos de formação docente e livros didáticos.

            Sobre o último, destacam-se “Alegria de Ler”, “Tábuas Completas” e “Matemática Suave e Divertida”, elaborados, em períodos diferentes, para o curso de Admissão ao Ginásio. Também merecem destaque os livros escritos em coautoria com Irene de Albuquerque para uso no curso primário: “O diário de Lúcia” e “Tudo é fácil”. Albuquerque foi professora do curso normal do Instituto de Educação. “Tudo é fácil” foi um sucesso. De acordo com Siqueira Filho (2008), foi alvo de diversos comentários elogiosos a seu respeito:

Lourenço Filho, Delgado de Carvalho, Antonio Carneiro Leão e Cecil Thiré, em suas observações, realçaram a originalidade, o grande valor didático, a fantasia que encanta e atrai a imaginação infantil, a simplicidade e a beleza da obra. As ilustrações nela contidas foram, particularmente, valorizadas por Delgado de Carvalho, como elementos auxiliares importantes no ensino da Matemática, segundo ele, a representação gráfica, que nele se encontra, das diferentes ordens da numeração decimal, é um artifício notável que permite concretizar as transformações abstratas do campo numérico (MELLO E SOUZA e ALBUQUERQUE, 1959, p. 6 apud SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 94).

           Nota-se, assim, que Mello e Souza se fazia presente em diversos espaços, não só na condição de Malba Tahan. As contribuições do professor e do heterônimo, no campo cultural, eram diversas. Colaboraram em produções periódicas, como em revistas da área – Revista Brasileira de Matemática (1920 – 1930), como editor, Revista Al-Karismi (1946 – 1951), como diretor responsável, e Revista Matemática da USP (década de 1960); revistas infantis – O Tico-Tico e Vida Infantil (SOUZA, 2019); e revistas juvenis – Globo Juvenil e Vida Juvenil (SOUZA, 2022). Os contos de Malba Tahan, porém, circularam por vários outros jornais e revistas, como O Jornal; O Cruzeiro; A Noite Ilustrada; Correio da Manhã; Última Hora (com “Matemática Recreativa”); Vamos Ler; A Cigarra; A Galera; O Número; A Maçã; Revista da Semana; Diário da Noite; Folha de São Paulo; Grande Hotel; e Vida Ilustrada (SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 52). Estiveram presentes, também, no rádio e na televisão. Mello e Souza trabalhou nas Rádios Nacional, Clube e Mairink Veiga, do Rio; na TV-Tupi, do Rio; e no Canal 2, de São Paulo, além de ter tido alguns contos adaptados para o rádio (CAVALHEIRO, 1991). Na Rádio Nacional atuou como professor da Universidade do Ar “sob o patrocínio da Divisão do Ensino Secundário do Ministério de Educação e Cultura (MEC), como professor catedrático de Matemática na Escola Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil” (ROBERTO FILHO, 2013, p. 22-23).

           O modo leve, divertido e romanesco de operar e escrever a Matemática é, sem dúvidas, a maior característica de Malba Tahan (e de seu criador), além de ser a justificativa para seu sucesso e difusão de suas produções até hoje. Mello e Souza, por ocasião da condecoração recebida pela obra “O Homem que Calculava”, em 1939, pela Academia Brasileira de Letras, defendia que

[…] a Matemática [era] simples, interessante e atraente e de uma acessibilidade que assombra. Ciência altamente estética, dotada de virtudes que encantam e de belezas sublimes que impressionam. Os que se ocupam da Matemática – afirma Gomes Teixeira, sábio português – começam a estudá-la pelo que tem de útil, principiam a amá-la quando compreendem o que tem de belo e apaixonam-se por ela quando alcançam o que tem de sublime (ARQUIVO PESSOAL IMT – Discurso de Malba Tahan na ABL, 1939 apud SIQUEIRA FILHO, 2008, p. 164).

           Era a partir dessa concepção, de que a matemática deveria ser simples, interessante, atraente e de fácil entendimento, que Mello e Souza dava aula e inspirava professores formados e em formação e Malba Tahan encantava a todos aqueles que liam suas obras, com especial ênfase para “O Homem que Calculava”, que lhe rendeu, por exemplo, a condecoração pela ABL. O livro, que se encontra em sua 100ª edição (2021), se desenrola na Bagdá do século XIII e é contada em primeira pessoa por Hank Tade-Maiá, que, ao viajar de Samarra a Bagdá, encontra o calculista persa Beremiz Samir, protagonista e quem dá título à obra – o homem que calculava. Assim, o livro narra suas aventuras e proezas no mundo da matemática, indo ao encontro da proposta do autor de oferecer um conteúdo divertido e envolvente, como a matemática deveria ser. De acordo com Morais (2017), o livro ainda é bastante utilizado nas salas de aula, principalmente por seu teor “lúdico-didático” (p. 21).

           A pedagogia defendida por Mello e Souza e Malba Tahan fugia da tradicional. Pelo contrário, os autores buscavam oferecer uma disciplina que fosse ao encontro de uma pedagogia nova, renovada e que se alinhasse ao Movimento da Escola Nova. Nesse sentido, buscavam colocar o estudante na condição de protagonista do processo de ensino-aprendizagem, de modo que o professor se tornasse o mediador entre a disciplina e o aluno, e não o centro do processo. Acreditava que a matemática poderia ser divertida e que fosse para além dos números; que ela pudesse se relacionar à vida do educando e fizesse sentido para ele.

           De acordo com Santos (2017), em sala, Mello e Souza “se transformava”, deixando a alegria, a criatividade e a ousadia o guiarem, pois acreditava que assim seria capaz de contagiar seus alunos e fazê-los enxergar a matemática de uma maneira mais amigável. Ademais, em “Didática da Matemática” (1961), o autor apresentou concepções e ideias para se trabalhar a matemática nas salas de aula, defendendo os valores a matemática: 1) o valor utilitário; 2) o valor educativo; e 3) o valor cultural. O valor utilitário se refere à ideia de a disciplina fornecer meios de se resolver problemas cotidianos e ter, em si, uma finalidade informativa e de uso prático. Além disso, Santos (2017) explica que:

O valor educativo, por sua vez, requer três condições básicas: 1) Que a matemática seja bem ensinada; 2) que o professor se interesse diretamente pelo estudante; 3) que as condições pessoais e materiais do aluno sejam favoráveis à aprendizagem. Quanto aos valores culturais da Matemática, Tahan (1961, p. 178-179) sustenta que só a Matemática torna o indivíduo (até um não-matemático) capaz de compreender e debater problemas que surgirem como corolários da complexidade da vida moderna: viagens interplanetárias, energia atômica, química da saúde (…) (SANTOS, 2017, p. 23)

           Esses eram parte dos princípios de Mello e Souza para sua prática pedagógica, fosse na condição de professor ou na de escritor. Com vistas a uma escrita matemática mais lúdica, de caráter interdisciplinar e, portanto, mais compreensível aos estudantes, a literatura parecia ser um caminho frutífero, não só por gerar uma narrativa potencialmente mais interessante, como também por incentivar a leitura, a escrita e a interpretação de textos, que tanto faz falta na resolução de problemas matemáticos.

            As estratégias pedagógicas de Mello e Souza e Malba Tahan são consideradas revolucionárias no sentido de terem colaborado com o processo de modernização do ensino de Matemática no Brasil. Pires (2005 apud Santos, 2017, p. 22) “aponta Euclides Roxo e Júlio César de Mello e Souza como protagonistas desse período”, o que nos faz compreender o legado deixado por Mello e Souza e Malba Tahan. Foram muitos livros publicados, muitos personagens envolvidos, exercícios, explicações e ideias que, até hoje, reverberam.

            Importa, ainda, apontar para a presença e o destaque de Mello e Souza e Malba Tahan nos dias de hoje. Há o Acervo Malba Tahan, administrado pelo Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP; o Instituto Malba Tahan, em Queluz (SP). Em 2013, foi instituído o Dia da Matemática no seu aniversário – 06 de maio – como forma de homenageá-lo e reforçar sua contribuição ao ensino de Matemática no Brasil. Há a Revista Malba, organizada por estudantes do Instituto de Matemática e Estatística da USP, como parte do evento Virada Malba Tahan, feita anualmente no dia nacional da matemática (MARQUES, 2022). Há peças de teatro inspiradas em Malba Tahan, como “Malba Tahan – O Homem que Calculava” e “Lilavati – Aventuras da Matemática”. Há eventos acadêmicos que focalizam em Malba Tahan e no ensino de matemática, com especial enfoque no Malbatemática, evento promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática nos/dos Anos Iniciais (GEPEMAI), da UNICAMP, todos os anos, na semana do Dia Nacional da Matemática. Há uma gama de produções acadêmicas e audiovisuais publicadas, dentre e-books, verbetes, monografias, dissertações e teses, que tem Mello e Souza e Malba Tahan como elementos centrais. Há o podcast “Mundo Tahan”, alimentado pelo professor Marcos Alvarenga, assim como diversas lives e palestras. Até hoje, inclusive, são utilizados elementos da pedagogia malbatahânica (termo cunhado por FARIA, 2004, p. 122 apud SANTOS, 2017, p. 35) e livros do autor nas escolas, o que demonstra a perenidade de sua passagem pelo mundo.

            Júlio César de Mello e Souza faleceu em 18 de junho de 1974, no Recife (PE), enquanto se preparava para dar dois cursos, a convite da Secretaria de Educação e Cultura: “A arte de contar histórias” e “Jogos e Recreações no ensino da Matemática”. Morreu ao lado de sua esposa, aos setenta e nove anos de idade, de edema pulmonar agudo e trombose coronária. Seu corpo foi sepultado no local onde nasceu: Rio de Janeiro, mas seu legado se mantém vivo pelo Brasil e pelo mundo e é uma permanência no campo da História da Matemática e, ainda, da Educação.

Referências:

ALBERTI, Verena. “Um drama em gente: trajetórias e projetos de Pessoa e seus heterônimos”. In: ______. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

CAVALHEIRO, Maria Theresa. O homem que calculava: vida e obra de Malba Tahan. Jornal Leitura, SP, novembro de 1991. 4 p.

DOCUMENTOS PESSOAIS. Site Malba Tahan. Disponível em: https://malbatahan.com.br/. Acesso em: 10 de julho de 2022.

HELD, Helder Macedo de. Malba Tahan: homem e personagem. Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010.

JAROUCHE, Mamede Mustafa. “Malba Tahan, ou como produzir um arabismo para jovens.” In: TAHAN, Malba. O homem que calculava. (100ª edição). Prefácio. Rio de Janeiro: Record, 2021, p. 15-26.

JORNAL A União. Lenda do Oásis, de Malba Tahan – Civilização Brasileira. João Pessoa, Paraíba, 13 de setembro de 1933.

LORENZATO, Sérgio. Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, da Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Círculo de Estudo – Memória e Pesquisa em Educação Matemática, Ano 3, No 4, novembro de 1995. 9 p.

MARQUES, Mariana. Revista “Malba” reúne desafios matemáticos para estudantes da educação básica. Site Jornal da USP, 2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/universidade/revista-malba-reune-desafios-matematicos-para-estudantes-da-educacao-basica/ . Acesso em: 19 de julho de 2022.

MORAIS, Claudiana dos Reis de Sousa. Registros do acervo de Júlio César de Mello e Souza: rede de contatos em fundos de documentação pessoal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas, SP, 2017, 129p.

OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Os contos argelinos de Lima Barreto. Anais da VIII Semana de Mobilização Científica (SEMOC). Universidade Católica do Salvador, Salvador, 17 a 21 de outubro de 2005.

ROBERTO FILHO, Mário. Júlio César de Mello e Souza – o Malba Tahan:  O Homem que Calculava, a vida e o legado. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (PROFMAT). Uberaba, MG, 2013, 71f.

SANTOS, Miely Cassemiro. Pedagogia de Malba Tahan na formação de professores e no ensino-aprendizagem de Matemática. Dissertação (Mestrado), Universidade de São Paulo – Escola de Engenharia. Lorena, 2017.

SIQUEIRA FILHO, Moysés Gonçalves. Ali Iezid Izz-Edim Ibn Salim Hank Malba Tahan: Episódios do nascimento e manutenção de um autor-personagem. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas – Faculdade de Educação. Campinas, 2008.

SOUZA, Mariana Elena Pinheiro dos Santos de. Divertir, educar e instruir: Vida Infantil (1947-1950). Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

SOUZA, Mariana Elena Pinheiro dos Santos de. O Jovem em Revista: Vida Juvenil (1949-1959). Anais do XI Congresso Brasileiro de História da Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2022.

TAHAN, Malba. O Homem que calculava. 100a ed. Rio de Janeiro: Record, 2021. 383p.

TAHAN, Malba. Acordaram-me de madrugada: recordações do antigo aluno do Colégio Pedro II. Colégio Pedro II, 1973.


Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza

(CAPES/ProPEd/UERJ)

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